domingo, 10 de novembro de 2013

CADA DIA MAIS SUJO E AGRESSIVO




Marcatti é o heróis dos editores independentes do Brasil. E ponto.
 
Workaholic e líder de um exército de um homem só, é a personalidade brasileira que podemos falar com 100% de certeza que participa de todas as etapas de sua produção: desde a ideia, passando pelos rascunhos a lápis, a finalização à nanquim, os acertos e diagramação digital, a impressão e distribuição. Não estou falando de zines, falo de livros.

Desde a década de 1980 Marcatti abriu mão de caçar editores para publicarem sua arte e, com uma herança que recebeu, investiu sua parte em uma impressora Rex Rotary 1501 que foi onde publicou revistas clássicas da HQ independente como Lôdo, Mijo, Pântano, Ventosa e Um Dia a Casa Cai. Essas publicações eram vendidas na porta de shows e de espaços culturais como SESC Pompeia, Lira Paulistana, Madame Satã. Segundo o editor, as vendas eram fortes em shows do Premeditando o Breque e Língua de Trapo, e o maior prejuízo eram nos shows de bandas punk: “Eles só tinham dinheiro para entrar no show e pra tomar uma cerveja”, relembra.

No final daquela década seu trabalho ficou mais conhecido quando passou a ter material publicado na revista Chiclete com Banana, Casseta Popular e Tralha. As edições mais vendidas da Chiclete foram as que tiveram estampadas na capa a heroína de Angeli, Mara Tara e, coincidentemente, nessas edições continha trabalhos do Marcatti. Logo, o seu gosto escatológico e situações fora do comum foram ganhando popularidade na massa e a lista de fãs cresceu a cada dia, ganhando força com o lançamento do livro As Aventuras de Glaucomix, o Pedólatra, em parceria com Glauco Mattoso.

A sua editora Pro-C, continuava com todo o pique e lançou, entre outros artistas, o primeiro trabalho de Lourenço Mutarelli.

No mesmo período criou uma das capas de disco mais fantásticas do rock: Brasil do Ratos de Porão. Nessa época existia poucos recursos tecnológicos e o original desse trabalho ficou em poder da extinta gravadora Eldorado. No ano seguinte, quando precisou finalizar um detalhe na capa do próximo disco do RDP, Anarkophobia, no estúdio de arte da gravadora, em um momento de descuido dos funcionários, achou o original da capa de Brasil e não pensou duas vezes: enrolou a sua arte, até então esquecida em uma gaveta qualquer, botou dentro da blusa e resgatou essa obra-prima. Porém, tempos depois, esse original foi roubado (não por Marcatti dessa vez!) em uma exposição e ainda continua desaparecida. Os trabalhos com a banda de João Gordo voltaram a rolar com a revista RDP Comix e, mais recentemente com a capa do LP No Money, No English.

Guitarra feita por Marcatti
Enquanto tudo isso acontecia, Marcatti ainda tinha que ralar para alimentar três filhos junto com sua esposa artista plástica Tata Pires. Sim, juventude, ele colocava comida na mesa vendendo quadrinhos de gosto duvidoso. Desde então, também se envolve em outras áreas como carpintaria, luteria (ainda vou comprar aquela guitarra!), pintura de carros antigos entre outras coisas. Ah, e também encontrou tempo para tocar na banda Easy Blues.

O artista autodidata ainda tem uns hábitos estranhos. O mais curioso é que desenha em pé, ao contrário de todos os demais ilustradores do mundo todo, e para sustentar essa mania,  construiu uma mesa fixada na parede de sua oficina, que fica na altura para que possa se acomodar para produzir suas obras. Outra mania é ele ter registrado o dia, horário, tipo de caneta, lápis e papel de todas (TODAS!) as suas artes! Ele criou um esquema de catalogação de seus trabalho com o qual consegue explicar todo o contexto que envolveu cada uma de suas histórias. Um absurdo!

No começo dos anos 90, a Rex Rotary 1501 não aguentou mais a rotina insaciável de Marcatti e resolveu, por conta própria, se aposentar. Depois disso, Marcatti chegou a lançar um bocado de números de seu personagem Frauzio, pela editora Escala e ainda os livros Mariposa e A Relíquia (releitura do clássico de Eça de Queiroz) pela Conrad.

Mas o desejo de se autopublicar era algo que tirava o sono de Marcatti e, com uma grande ajuda do cartunista Bira Dantas, em meados de 2012 conseguiu adquirir a Multilith 1250, uma impressora de mais de 300kg, fabricada em 1954, mais poderosa que a antiga Rex. O retorno às impressões começou com chave de ouro, com o lançamento de A Risada de Arnaldo, uma adaptação de um conto de seu filho André PiJaMar, que reiniciou uma fase de muita produção para Marcatti que também passou a imprimir para outras editores, como a Ugra Press.

Coprólitos e Enterólitos

Nas adaptações que fez em sua casa para acomodar a sua Multilith, Marcatti encontrou uma pasta que acomodava toda a sua produção de 1986 a 1992, que o autor considera como “um registro completo da fase mais alucinada e repugnante de seu humor”. Percebeu que não fazia sentido deixar tudo isso encaixotado e foi quando teve a ideia do projeto Coprólitos, uma coletânea com toda essas HQs, com mais de 120 páginas.

Aproveitando da onda dos financiamentos coletivos, colocou seu projeto no Catarse e foi onde conseguiu atingir 185% do valor necessário para esse lançamento. Com o sucesso do projeto, passou a aumentar as bonificações para os financiadores (que incluem originais, camisetas, pôsters etc.) e viabilizou também o lançamento de Enterólitos, com as ilustrações dos originais presenteados para os colaboradores.

Coprólitos tem um acabamento especial, com duas capas sobrepostas que dá um charme todo especial e que entra em choque com a ilustração que faz referência ao nome do livro que, para quem não sabe, trata-se de fezes conservadas por meio de fossilização e que são fontes de pesquisa para entender o conteúdo intestinal de quem a cagou. Daí dá pra ter uma ideia do que vem pela frente…

O livro abre com uma riquíssima introdução de Gualberto Costa, o Gual da HQ Mix, na qual conta boa parte da história de Marcatti, relacionando com o contexto da época, costurando com a vida pessoal e profissional do desenhista. Muitos detalhes nunca dantes publicados aparecem nessa apresentação muito carismática que, para quem conhece o Gual, lê como se estivesse conversando com ele numa mesa de bar.

Depois disso, é só coisa pesada! Começa por “Liberô geral”, onde os traços característicos do artista ainda estão em fase de formação, só levemente escatológico, mas já chutando o pau da barraca, mostrando uma relação de incesto radical e descarado que envolve toda a família (até o cachorro Duque e a empregada) e uma leve beslicada nos hábitos pseudo-cristãos da humanidade.

Também tem a sua HQ mais clássica, a “Saudosa Velhota”, mais conhecida como Tia Surubinha, publicada na Lôdo e depois na Chiclete.  É a história de um jovem mora com a tia, que lhe oferece todos os prazeres da vida sem reclamar, e que tem um final trágico, porém, com uma conclusão espetacular.

Ao total são 32 histórias, nas quais quase nenhum personagem se repete, com exceção do “Lauro, a Larva”, que aparece em duas HQs. O restante são personagens pontuais, criados para aquelas histórias únicas. Alguns poderiam aparecer mais vezes, como a Zulmira de “José Roberto”, o Gervásio de “O melhor amigo do homem”, a Dona Joana e o Adamastor. Seria bem interessante que esses personagens criassem pernas assim como o Frauzio (único personagem longevo de Marcatti) e aparecessem em mais histórias.

Algo interessante apontado por Marcatti é que a cada história (que aparecem em ordem cronológica) é uma viagem no tempo, um retorno à época em que foi publicada. Para quem acompanha o trabalho do artista sabe que isso realmente acontece, pois é possível relaembrar como essas histórias foram absorvidas a primeira vista e os sentimentos e sensações que provocavam não só no leitor, mas também na mãe ou irmã menos desavisada que liam suas histórias. Geralmente as reações eram essas: do leitor - “uau!”, da mãe e irmã - “eca! Como você consegue ler isso?” Alguém concorda?



Também é bem legal de observar, nos seis anos em que as histórias foram feitas, a evolução de Marcatti em todos os aspectos: nos traços, detalhes, roteiros, sombras, e o quanto foi ficando cada vez mais escatológico e provocador diante dos dogmas da humanidade, quebrando todos os paradigmas éticos, consensuais, sem abrir mão da contestação e do humor ácido e afiado.

Corpólitos consegue mostrar a essência do trabalho desse grande mestre, de um estilo que não passa despercebido: sempre há uma reação, seja ela de nojo (quase sempre) e de felicidade.

Já o Enterólitos é uma coletânea das ilustrações que os colaboradores do projeto ganharam de Marcatti. Cada desenho foi feito exclusivamente para o doador, que recebeu o seu original e ainda sob cada obra consta que pertence ao acervo particular do presenteado. Cada uma das cinquenta foi feita de forma aleatória e com motivos mais variados possíveis. Mas todos dentro da linha estética visceral do ilustrador.

São dois grandes lançamentos que têm o toque do faz-tudo em todas as etapas do processo. No meu caso, nem teve o carteiro na mediação, foi entregue em mãos pelo próprio Marcatti, ou seja, tudo feito por um homem só. Já experimentou sensação igual?

É um marco na HQ brasileira, por mostrar que é sim possível viver com aquilo que gosta, baseado no “faça você mesmo” e que, de quebra, ainda registra uma fase muito criativa de um dos maiores quadristas que esse país já conheceu. Por essas e por outras que Marcatti é nosso herói. E ponto final.

Ah, os livros podem ser adquiridos direto com o Marcatti, na sua loja virtual!